ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO / O ministro Barroso vai acabar com a propriedade privada? Pós-pandemia e reintegração de posse “humanizada”
Me chamou a atenção artigo de renomado consultor jurídico sobre a última medida monocrática tiomada pelo ministro do STF, Luiz Roberto Barroso sobre o direito à propriedade privada. Esta pode estar ameaçada, no Brasil. Confira o artigo.
Na terça-feira, 1º, foi proferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso, na famosa ADPF 828, uma decisão que foi recepcionada por muitos como o fim da propriedade privada no Brasil.
Diversas reportagens e publicações nesse sentido viralizaram pela internet em poucas horas, mas qual é o verdadeiro impacto dessa decisão e em que contexto ela foi proferida?
É preciso analisar tal decisão sob um ponto de vista crítico, no contexto de pós pandemia que vivenciamos, nos como advogados, convivemos com um longo período de suspensão dos prazos processuais, e regime extraordinário de direito no ano de 2020, oriundo dos impactos do COVID19.
Tudo começou com a Recomendação n. 45 do CNJ[1], que deu início a suspensão parcial das atividades dos Tribunais e cartórios extrajudiciais, situação essa consolidada pela Resolução Nº 313 de 19/03/2020 do CNJ[2], e pelas subsequentes.
Durante o período de pandemia, quase que por consenso do poder judiciário os atos de desocupação e despejo, encontravam-se suspensos, com fito de evitar que se agravasse a crise sanitária. Temos que levar em consideração que essa situação se prorrogou por quase um ano, provocando um hiato no sistema jurídico brasileiro.
O que é a ADPF 828?
Primeiramente, nesse contexto, temos que entender o que é uma ADPF, essa sigla representa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, figura bem conhecida dos estudiosos do Direito Constitucional brasileiro. A ADPF é uma modalidade de Ação Constitucional, que tem por objetivo evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, e é disciplinada pela Lei n. 9.882/1991[3].
Referida ação, é proposta para tramitação perante o Supremo Tribunal Federal-STF (Art. 102, § 1º, da CRFB), já que é de competência própria do STF atuar como guardião perpetuo da Constituição Federal.
Mas e a tal APDF 828?
Voltando ao nosso foco, após as breves considerações acima, em 15/04/2021, o PSOL, partido notadamente de esquerda, ajuizou um pedido ao STF sob a forma do que se tornou a ADPF 828[4], esse pedido tinha por base a Recomendação 90/2021 do CNJ[5], e visava ampliar sua aplicabilidade e reflexos.
Nesse sentido a primeira liminar concedida na referida ADPF, foi proferida pelo Min. Barroso, ainda em 03 de Junho de 2021, determinando:
[…]
Ante o quadro, defiro parcialmente a medida cautelar para:
i) com relação a ocupações anteriores à pandemia: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020, quando do início da vigência do estado de calamidade pública (Decreto Legislativo nº 6/2020);
ii) com relação a ocupações posteriores à pandemia: com relação às ocupações ocorridas após o marco temporal de 20 de março de 2020, referido acima, que sirvam de moradia para populações vulneráveis, o Poder Público poderá atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada; e
iii) com relação ao despejo liminar: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, a possibilidade de concessão de despejo liminar sumário, sem a audiência da parte contrária (art. 59, § 1º, da Lei nº 8.425/1991), nos casos de locações residenciais em que o locatário seja pessoa vulnerável, mantida a possibilidade da ação de despejo por falta de pagamento, com observância do rito normal e contraditório.
62. Ficam ressalvadas da abrangência da presente medida cautelar as seguintes hipóteses:
i) ocupações situadas em áreas de risco, suscetíveis à ocorrência de deslizamentos, inundações ou processos correlatos, mesmo que sejam anteriores ao estado de calamidade pública, nas quais a remoção poderá acontecer, respeitados os termos do art. 3º-B da Lei federal nº 12.340/201017;
ii) situações em que a desocupação se mostre ADPF 828 MC / DF absolutamente necessária para o combate ao crime organizado – a exemplo de complexos habitacionais invadidos e dominados por facções criminosas – nas quais deve ser assegurada a realocação de pessoas vulneráveis que não estejam envolvidas na prática dos delitos;
iii) a possibilidade de desintrusão de invasores em terras indígenas; e
iv) posições jurídicas que tenham por fundamento leis locais mais favoráveis à tutela do direito à moradia, desde que compatíveis com a Constituição, e decisões judiciais anteriores que confiram maior grau de proteção a grupos vulneráveis específicos, casos em que a medida mais protetiva prevalece sobre a presente decisão[6].
Nota-se, conforme o acima exposto que a abrangência da Decisão é restrita a casos muito específicos, logo nunca deixamos de fazer sequer uma reintegração/manutenção de posse em favor de particulares, tampouco de cumprir as liminares concedidas pelo poder judiciário, ou de obter, quando necessário, as devidas medidas de Interdito Proibitório.
A suspensão de seis meses para os casos de desocupação, ou seja, casos em que é necessário manejar de Ação de Reintegração de Posse, é exclusiva para casos de “posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020.”
Querem relembrar a diferença entre Interdito Proibitório, Manutenção de Posse e Reintegração de Posse? Vou deixar o link aqui no rodapé[7].
Pois bem, vamos continuar nossa análise, referida Ação seguiu seu curso, com ampla participação de diversos órgãos representando os estados membros da União Federal, e com órgãos representativos de classes e interesses ligados a Ação.
Nesse ínterim, foi publicada a Lei n. 14.216/2021[8], que dentre outras coisas determinou a suspensão até 31 de dezembro de 2021 de todos os efeitos de atos ou decisões judiciais, extrajudiciais ou administrativos, editados ou proferidos desde a vigência do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6/2020, pelo prazo de até 1 (um) ano após o seu término, que impliquem na desocupação ou a remoção forçada coletiva de imóvel privado ou público, exclusivamente urbano, que sirva de moradia ou que represente área produtiva pelo trabalho individual ou familiar.
Essa norma tinha por objeto a princípio, apenas disciplinar tal relação no que diz respeito a imóveis urbanos, e fez constar de modo explícito em seu texto que:
Art. 2˚
[…]
§ 2º As medidas decorrentes de atos ou decisões proferidos em data anterior à vigência do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, não serão efetivadas até 1 (um) ano após o seu término.
§ 3º Durante o período mencionado no caput deste artigo, não serão adotadas medidas preparatórias ou negociações com o fim de efetivar eventual remoção, e a autoridade administrativa ou judicial deverá manter sobrestados os processos em curso.
§ 4º Superado o prazo de suspensão a que se refere o caput deste artigo, o Poder Judiciário deverá realizar audiência de mediação entre as partes, com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública, nos processos de despejo, de remoção forçada e de reintegração de posse coletivos que estejam em tramitação e realizar inspeção judicial nas áreas em litígio.
Dessa forma a própria norma estabeleceu um procedimento extraordinário para os casos de despejo e desocupação, notadamente dando destaque aos casos de ocupação coletiva, traçando um procedimento que já era muito semelhante ao adotado pela maioria dos juízes em casos de desocupação forçada de imóveis invadidos por uma coletividade de pessoas.
Destaco a vocês, que, mesmo antes da aludida norma, raramente se realizou no Brasil uma reintegração de posse em casos de ocupação coletiva, sem que antes fossem ouvidos o MP e a Defensória pública, e sem que após realizado estudo social, conforme determinado pelo Magistrado, se tentasse um acordo para desocupação voluntária, visando evitar o uso desnecessário de força. Após superadas essas etapas, aí sim ocorria a desocupação com base em todo o rigor da lei e com uso de toda a força necessária.
Completamente diferente, sempre foi a defesa previa da posse, mediante os Interdito Proibitório e pedido de Manutenção de Posse, que fugindo a regra acima, culminavam sempre com a imediata liminar em favor do legitimo possuidor, quase sempre, proprietário do imóvel, fato esse que pouco mudou, mesmo durante referido período excepcional.
Porém em decorrência da supracitada norma em 01 de Dezembro de 2021, no bojo da mesma ADPF, decidiu o Min. Barroso que:
4. No tocante aos imóveis situados em áreas rurais, há uma omissão inconstitucional por parte do legislador, tendo em vista que não há critério razoável para proteger aqueles que estão em área urbana e deixar de proteger quem se encontra em área rural. Por isso, nessa parte, prorrogo a vigência da medida cautelar até 31.03.2022 e determino que a suspensão das ordens de desocupação e despejo devem seguir os parâmetros fixados na Lei nº 14.216/2021.
5. Faço apelo ao legislador, a fim de que prorrogue a vigência do prazo de suspensão das ordens de desocupação e despejo por, no mínimo, mais três meses, a contar do prazo fixado na Lei nº
14.216/2021, tendo em vista que os efeitos da pandemia ainda persistem.
6. Caso não venha a ser deliberada a prorrogação pelo Congresso Nacional ou até que isso ocorra, concedo a medida cautelar incidental, a fim de que a suspensão determinada na Lei nº 14.216/2021 siga vigente até 31.03.2022[9].
Nessa toada, foi o próprio Min. Barroso que em interpretação extensiva da norma ampliou sua aplicabilidade aos imóveis rurais, porém ainda limitada aos mesmos condicionantes, já aludidos, de ocupação efetiva e anterior a 20 de março de 2020, quando do início da vigência do estado de calamidade pública.
Em 09 de Dezembro de 2021 o plenário do Supremo Tribunal Federal-STF, referendou, ou seja, confirmou por maioria os efeitos da decisão acima aludida, proferida pelo Min. Barroso.
Em 30 de março de 2022[10], os efeitos dessa decisão, foram prorrogados até 30 de Junho de 2022.
Pela segunda vez em 07 de abril de 2022 o plenário do Supremo Tribunal Federal-STF, referendou, ou seja, confirmou por maioria os efeitos da decisão acima aludida, proferida pelo Min. Barroso.
E novamente em 30 de Junho de 2022, [11], os efeitos dessa decisão, foram prorrogados até 31 de Outubro de 2022.
Pela terceira vez em 08 de Agosto de 2022 o plenário do Supremo Tribunal Federal-STF, referendou, ou seja, confirmou por maioria os efeitos da decisão acima aludida, proferida pelo Min. Barroso.
Até que por fim em 31 de Outubro de 2022, chegou a hora de se por fim a esse regime excepcional, e dar início a uma fase de transição.
Diversos proprietários, locadores, e até mesmo entes do poder público, aguardavam desde 2020, a autorização para promover os atos necessários, a efetivar a desocupação de seus imóveis, o que levou o Min. Barroso a determinar que:
Ante o exposto, defiro parcialmente o pedido de medida cautelar incidental para determinar a adoção de um regime de transição para a retomada da execução de decisões suspensas na presente ação, nos seguintes termos:
(a) Determino que os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais instalem, imediatamente, comissões de conflitos fundiários que possam servir de apoio operacional aos juízes e, principalmente nesse primeiro momento, elaborar a estratégia de retomada da execução de decisões suspensas pela presente ação, de maneira gradual e escalonada;
(b) Determino a realização de inspeções judiciais e de audiências de mediação pelas comissões de conflitos fundiários, como etapa prévia e necessária às ordens de desocupação coletiva, inclusive em relação àquelas cujos mandados já tenham sido expedidos. As audiências devem contar com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública nos locais em que esta estiver estruturada, bem como, quando for o caso, dos órgãos responsáveis pela política agrária e urbana da União, Estados, Distrito Federal e Municípios onde se situe a área do litígio, nos termos do art. 565 do Código de Processo Civil e do art. 2º, § 4º, da Lei nº 14.216/2021.
(c) Determino que as medidas administrativas que possam resultar em remoções coletivas de pessoas vulneráveis (i) sejam realizadas mediante a ciência prévia e oitiva dos representantes das comunidades afetadas; (ii) sejam antecedidas de prazo mínimo razoável para a desocupação pela população envolvida; (iii) garantam o encaminhamento das pessoas em situação de vulnerabilidade social para abrigos públicos (ou local com condições dignas) ou adotem outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia, vedando-se, em qualquer caso, a separação de membros de uma mesma família. Autorizo, por fim, a imediata retomada do regime legal para desocupação de imóvel urbano em ações de despejo (Lei nº 8.245/1991, art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX). Determino a intimação da União, do Distrito Federal e dos Estados da Federação, assim como da Presidência dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, para ciência e imediato cumprimento da decisão. Intimem-se também o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional de Direitos Humanos, para ciência.
Tais medidas, regulam uma serie de despejos e desocupações, paralisadas desde 2020, e se dão em status de excepcionalidade, para regular somente a situações abrangidas pela Lei n. 14.216/2021, e não se estendem a qualquer invasão de propriedade em solo pátrio.
Referida decisão disciplina uma situação excepcional, criada pelo legislador e regulada pelo STF, em virtude do regime jurídico adotado no período de pandemia.
Diversos Tribunais, já possuem núcleos com funções semelhantes, como por exemplo o Núcleo de Prevenção de Conflitos Fundiários-NUPREF, no caso do TJTO.
O objetivo dessas medidas é apenas assegurar que, após esse longo período de suspensão das desocupações e despejos, as medidas nesse sentido sejam executadas, com menor impacto as camadas vulneráveis da população, dando margem a busca de uma desocupação voluntária a ser efetivada em prazo certo e determinado, sob pena de se proceder a desocupação forçada, com todos os rigores da lei.
Outra questão é que, como tal situação surgiu por intervenção legal do próprio poder público, que o mesmo se obrigue a resolver os problemas sociais oriundos de tais desocupações, evitando que as pessoas a serem removidas dos imóveis, voltem a invadir outros imóveis ou a vagar de modo errante como população de rua.
Mas e o fim da Propriedade Privada?
A propriedade está presente na vida do ser humano, desde os primórdios da organização das primeiras estruturas sociais. Foi matéria de direito civil e natural entre os romanos e privilégio apenas dos cidadãos romanos por muitos anos, foi prerrogativa dos nobres durante os anos que se estenderam da idade média ao séc. XVIII.
Em nosso ordenamento pátrio, foi expressa pela primeira vez como Direito Positivo certo e determinado no Art. 179, XII da Constituição Imperial de 1824, que garantia a inviolabilidade do direito de propriedade, ao mesmo tempo em que ressalvava os casos de utilização dos bens particulares pelo poder público, vez que já nessa época o direito a justa e previa indenização era garantido ao cidadão brasileiro.
Foi entretanto, só com o advento da Constituição de 1988, que o Direito de Propriedade adquiriu status de garantia fundamental, ao mesmo tempo em que foi atrelado a um novo elemento que lhe segue até os dias modernos, como parte indissolúvel de sua essência, a chamada “função social”.
Os Direitos Fundamentais, dentre eles a propriedade, são garantias constitucionais que asseguram ao indivíduo mínimo necessário para que possa viver de forma digna dentro de uma sociedade administrada pelo Poder Estatal.
Nesse sentido, recomendamos a leitura de nosso artigo intitulado “Direito de Propriedade como um Direito Fundamental: Terras Devolutas, Reforma Agrária e Titulação”[12]
A propriedade privada é garantia fundamental, incluída no rol da Constituição Federal, e possui status de cláusula pétrea, logo não se pode simplesmente “acabar com a propriedade privada”.
Como cláusula pétrea a garantia da propriedade privada não pode ser removida da Constituição Federal, nem sequer por Emenda ou Plebiscito, já que o próprio Art. 60, § 4º, IV da Constituição veda, qualquer emenda ou alteração que tenho por objetivo abolir quaisquer garantias fundamentais.
Se o problema é a forma e termo em que se deu a decisão do Min. Barroso, esse problema deveria ter sido combatido desde 2020, bem como o projeto que deu origem a Lei n. 14.216/2021.
Entretanto, recomendo muito cuidado para que, as medidas aplicadas a essa situação excepcional, não virem regra pela displicência do STF.
ANTÔNIO RIBEIRO COSTA NETO
É consultor jurídico, professor universitário e escritor; Advogado com escritório especializado em Regularização Fundiária, Direito Agrário e de Direito de Propriedade; Membro da Comissão Nacional de Direito do Agronegócio-ABA; Membro Consultor da Comissão de Relações Agrárias-OAB/TO; Especialista em Direito Imobiliário-UNIP/DF.
costaneto.jus.adv@gmail.com
FONTE: COLUNADOCT